quinta-feira, 21 de abril de 2011

Paisagens de um mundo interior: a magia de "Só", novo trabalho de Ulisses Rocha

Entre olhar e ver vai o mundo. Pode-se apenas perceber, vislumbrar, relancear. Mas quem de fato vê, este rearruma os elementos. Integra-se a eles não somente para apreender sua integridade, mas para recompô-la e, com isso, recompor-se, transfigurar-se. Ver é solitário. Requer tempo, disponibilidade, inteligência. E não requer que o visto esteja ali, palpável, físico. Nem mesmo existente. Ver é para dentro.

Algumas pessoas, poucas, conseguem traduzir em arte tal exercício introspectivo – em poesia, qual seja a forma que tome (palavras, imagens, melodias). Penso nisso enquanto ouço o novo trabalho do violonista Ulisses Rocha, intitulado “Só”. Penso nisso porque a riqueza da música me induz a uma viagem evocativa de sentimentos, ambientes, rostos, fatos, memórias que nem sei se tenho ou conheço. Atribuo, inicialmente, o nome do disco ao fato corriqueiro de ser este um CD de violão solo. Mas sou tomado pela plangência das melodias, pela rigorosa composição imagética que surge a cada tema ou subtema expostos, pelas fusões, alternâncias, justaposições de texturas: não, este não é um CD de violão solo, não apenas. É a grande arte, a rara, superlativa grande arte, poesia.

Só depois de várias audições abro o encarte do disco e leio o texto do autor: “Foi acontecendo de madrugada, depois que todo mundo dormia e o silêncio convidava a uma viagem solitária pelas paisagens musicais”, escreveu Ulisses Rocha, “como sempre sonhei, em casa, sem pressa nem ansiedade, fazendo, refazendo ou desfazendo, compondo, tocando e gravando com toda a liberdade e conforto, sem a percepção do tempo”.

Vejam que Ulisses não falou de premência temporal, mas em percepção temporal. Na primeira hipótese, o sentido de urgência seria regido pela cronologia convencional – o compromisso e as consequências de não cumpri-lo. Na segunda, a urgência só se justifica pela necessidade interior, criativa, de capturar (para traduzir de forma pessoal) uma nuance, uma explosão de cores, a gravidade de certa penumbra, o caráter nostálgico de um som, do movimento de um galho de árvore, a forma de uma pedra, a maneira como a água do mar se quebra em onda contra a pedra.
O formidável é que não foi preciso ler o texto, antes, para entender o significado de “Só”.

Como somente um artista de gênio consegue, Ulisses Rocha projeta, com sua música, metempsicose, para que os admiremos, para que também os adoremos, os seres, objetos, paisagens, as sensações, as expectativas que o moveram no ato da criação. Proeza ainda maior quando filtrada pelo formato gélido, retilíneo, do registro digital: à distância, em outro horizonte, todo o engenho humano no êxtase da perfeita articulação da linguagem artística.

O sabor que me fica, como o que traz aos sentidos, em ressonância, o gole de um bom vinho, é por vezes villalobiano, egbertiano ou jobiniano – mas apenas porque a música de Ulisses transpira a brasilidade que esses mestres ajudaram a desenhar. A música de Ulisses Rocha é dele, nascida de sua percepção, tradução de suas crenças e descrenças, projeção de suas utopias ou consubstanciação de seus sonhos. Mas é dele. Aquelas abstrações (tão concretamente realizadas) são dele e só dele.

Ulisses nasceu, como Villa e Jobim, no Rio de Janeiro, mas passou a infância no interior do estado de São Paulo – para ser preciso, em Pirassununga. Aos dez anos – em 1970 –, já em São Paulo, começou a estudar violão (com Antonio Manzione). O mestre mudou-se para Santos e o jovem aluno seguiu sozinho, experimentou a guitarra e o rock e, em 1977, ingressou no Centro Livre de Aprendizagem Musical (Clam), do Zimbo Trio.

Ficou amigo de André Geraissatti, que dava aulas no Clam e o convidou a integrar o inovador e importantíssimo trio D’Alma (o terceiro violão era Rui Salene; também participaram do D’Alma Mozart Mello e Cândido Penteado). A formação era tão inusitada e de tão brilhantes resultados que inspirou John McLaughlin a criar grupo semelhante, com Paco de Lucia e Al Di Meola.

Desfeito o D’Alma, Ulisses assumiu carreira solo que já rendeu mais de uma dezena de discos preciosos. Nesse meio tempo, Cesar Camargo Mariano o convocou para seu projeto “Prisma”; Ulisses tocou com Hermeto, Egberto, Marco Pereira, Paulo Bellinatti, cantores e cantoras, viajou e teve discos lançado pelo mundo, participou de grandes festivais, solou à frente de sinfônicas, escreveu dois livros – um deles, “Estudos para Violão”, com obras de sua autoria, é item obrigatório no currículo de quem deseja conhecer a fundo o instrumento. A alma do instrumento.

Tal com ela se expõe integral em “Só”. Os dez temas, todos assinados por Ulisses, poderiam, simplificadamente, ser chamados de descritivos. Mesmo os títulos – “Duna”, “Lua”, “Ítaca”, “Jabuticaba” – indicam a possibilidade que, de fato, seria limitadora. O título é necessário para identificar o tema, mas o tema o transcende, amplia, reforma. Uma lua não é uma lua não é uma lua não é uma lua – é a quintessência da lua, o que ela desperta, insinua, plasmada naquele específico encaminhamento harmônico, naquela pausa e naquele pulso únicos com os quais a sensibilidade do músico vai reformando o que sente ou observa.

Mas “Só” não é um trabalho hermético, para iniciados. Pelo contrário, faz-se ouvir fluidamente, com prazer, antes de mais nada, e ao prazer se acrescenta o regozijo que nos traz a plenitude da beleza. Uma daquelas obras que revela a maravilha – e vai de novo a expressão - do engenho humano.

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Tenho apreço especial por melodias de saibro melancólico, o traço quase inexprimível de certa tristeza que acredito inerente à alma do ser sensível. Lembro de dividir com Guinga o posto no júri um festival quando surgiu discussão sobre a música de certo candidato – por sinal outro violonista. Alguém no corpo de jurados argumentou que a obra do concorrente era muito triste. Guinga fico furioso: “Eu gosto de música triste! Por que é que eu não posso gostar de música triste? Qual é o defeito da música triste?”

Naturalmente que ele não falava (como eu não falo, agora) do sentimento que nos traz a grande tragédia, a violência, a injustiça ou a miséria, mas de nossas intrínsecas fragilidades, da convivência com a finitude, da intangibilidade da beleza absoluta, a consciência das imperfeições que nos moldam. Sobretudo, de indignação: se o engenho humano é capaz de originar “Só”, de Ulisses Rocha, por que cargas d’água construímos um mundo tão estúpido como é o nosso?

O disco de Ulisses, tal como o percebo, deixa pairando essa pergunta. Por outro lado, fornece, com sua perfeição, a hipótese de alguma alternativa.

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“Só” é um disco independente. Não sei em que lojas estaria disponível. Aconselho que visitem o site do artista: www.ulissesrocha.com.

5 comentários:

  1. Oi, pai!
    Vc escreve muito bem!
    Beijinhoss
    Nara

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  2. Oi, filhotinha, obrigado. Eu ia dizer a mesma coisa: você escreve muito bem. E estou adorando a sua historinha. Quero saber mais. Beijinho, meu amor.

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  3. Mauro, você traduziu de forma sublime tudo o que penso sobre esse maravilhoso trabalho de Ulisses Rocha. Não me canso de ouvir esse disco. Ele me faz viajar não sei pra onde...
    Dener Serafim Mattar, Passos-MG
    dsmattar@uol.com.br

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  4. fala aí Mauro Dias!
    É mesmo impressionante a quantidade de informações contidas neste seu blog.
    Estou muito feliz de ver divulgado o que temos de melhor na música brasileira.
    Sem dúvida, Ulisses Rocha é um dos maiores violonistas deste país e também do mundo.
    muito obrigado por escrever sobre coisas tão boas.
    Grande abraço!

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