quarta-feira, 4 de maio de 2011

Golpe em marcha para tirar Ana de Hollanda do MinC. Estou com medo

Aplaudi a indicação de Ana de Hollanda para o Ministério da Cultura da posição independente de quem não votou na Dilma Rousseff. Aplaudi por muitos motivos, mas dois deles já me seriam suficientes. Primeiro, Ana de Hollanda vinha de um não questionado período à frente da Funarte, o que lhe conferia – confere – experiência administrativa e comprova capacidade na lida com as complicações do tráfego burocrático. Segundo, e mais importante, Ana de Hollanda é uma artista independente. Fez a carreira de cantora a contrapelo do mercado, gravou o que quis gravar, da forma como quis gravar, tendo como norte o primado estético, como regra a integridade artística. Há quem goste e quem não goste do trabalho da cantora Ana de Hollanda. Não há quem lhe negue honestidade e coragem na construção da carreira.

O fato é inédito: um artista, se não de sucesso, ao menos de prestígio, sem ligação com a indústria (ou a academia) chega ao comando do MinC. Bolas, todos sabemos muito bem que existem duas músicas brasileiras (e vou falar só de música, campo que conheço bem e sobre o qual escrevo há mais de quarenta anos). Uma delas, uma dessas músicas brasileiras, é a criada pelo mercado, pela indústria, pelas três multinacionais que mandam no mercado fonográfico, na difusão televisiva e radiofônica e no trânsito virtual de informações. Essa música é, na quase totalidade (totalidade, de fato; há uma ou outra exceções que confirmam a regra), muito ruim. Não representa xongas para a cultura. Tem significado para a megaindústria do entretenimento e para as bolsas de valores. Naturalmente, a criação que circula nessa esfera tem o lucro como objetivo. Nada contra o lucro. É só questão de pôr as coisas no lugar.

A outra música brasileira é a que o sujeito faz de acordo com sua sensibilidade, suas convicções artísticas, seu desejo de traduzir o mundo, à sua maneira, sem outros ditames que não os de foro íntimo. Esse criador é o independente. Se faz um disco, ele é lançado por uma gravadora pequena – ou o artista cria seu próprio selo para lançar o disco. Dessa forma, a obra submete-se ao mínimo possível de interferência externa. O resultado pode ser formidável ou pavoroso. Não importa, é autêntico. E a verdade é: nem toda música independente é boa, mas praticamente toda música boa em circulação é independente. Ou, posto de outra forma: se ser independente não faz de ninguém um bom artista, ser parte da indústria, como regra, caracteriza um artista que se importa mais com o lucro do que com a arte.

Essa é uma discussão antiga, que embute um monte de “no entanto”, “não obstante”, “por outro lado” – e joga com questões não artísticas – necessidades particulares, questões de sobrevivência, vaidade, claro, mas também coerência, caráter e outras qualidades (negativas ou positivas) abstratas. Renderia páginas e páginas de exposição e outras tantas de discussão, mas nada muda a realidade: a boa canção brasileira está na produção independente, que, sim, também é um mercado, mas de proporções menores do que aquele capitaneado pela grande indústria e, por uma tradição há muito estabelecida, mais preocupado com a boa qualidade – a autenticidade - de seu produto. A independência permite que o artista ouse, seja diferente, corra riscos, defenda estéticas, crie estéticas, marque presença, anuncie sotaques, explicite estranhamentos, estabeleça parâmetros, diversifique parâmetros, introduza ou suprima elementos, expanda experiências, enfim, manifeste-se.

Então, quando alguém vinda dessa extração assume o Ministério da Cultura, essa é uma boa notícia. Ana de Hollanda vem (ou melhor, é) do mercado independente, conhece as dificuldades de se fazer cultura sem o amparo dos mecanismos da grande indústria, sem garantia nenhuma de chegar ao topo da parada de sucessos, mas com garantia total de fazer o que lhe dá na telha e lhe parece bom (muitas vezes pagando do próprio bolso para que a criação se transforme em produto, em disco). Eventualmente entra um trocadinho, suado, sofrido, pequeno, mas estava previsto. E é assim que a cultura se move, assim ela anda para a frente.

Uma cantora com experiência nessa área pode fazer muito pela música brasileira – mais uma vez, estou falando de música porque é o que conheço melhor. Com base em sua experiência no mercado independente, com seu conhecimento de como funcionam os mecanismos que freiam a divulgação da obra que não pertence ao grande mercado, pode dar contribuição formidável para nosso cancioneiro. Pelo vasto conhecimento da cultura popular tradicional, pela vivência junto aos criadores alternativos, pelas batalhas que enfrentou para levar seus discos às lojas, seus espetáculos aos palcos, conhece como só quem viveu a questão as dificuldades porque passa a grande maioria dos autores, intérpretes, músicos. Junte-se isso à experiência administrativa e podemos ter um Ministério da Cultura que faça jus à cultura que representa.

Agora querem expulsar Ana de Hollanda do MinC. Há um golpe em andamento. Ela mexeu em vespeiro e estão fazendo o possível para defenestrá-la.

A nomeação de Ana de Hollanda foi uma porrada na cara da corrente hegemônica do MinC conforme a estrutura deixada por Gilberto Gil, um grande artista que fez carreira na indústria (os tempos eram outros, naturalmente) e que tem cabeça de mercado, até porque as contingências de sua trajetória são muito peculiares (outro tópico que renderia páginas e páginas de discussão). E foi uma porrada porque Ana de Hollanda mandou retirar da página inicial do sítio do MinC o link para licenças do Creative Commmons, um mecanismo que permite que determinado autor abra mão, sob certas circunstâncias, de seus direitos financeiros resultantes da circulação da obra.

A ministra argumentou desde o início que não era necessária aquela licença específica – que se apresenta como sem fins lucrativos -, uma vez que a legislação ordinária permite que um autor abra mão de seus direitos – etc. O MinC considera o link propaganda de um produto multinacional que funciona como “barateador de custos” para a “livre circulação da informação” – leia-se, obra de arte (música, textos e mais). Não argumentou, muito diplomaticamente, que o tal mecanismo é mantido por empresas de software - o Google, por exemplo, é uma empresa de software livre, usado no mundo inteiro, gratuito. Gratuito? É o maior empreendimento comercial da era da informática, maior do que a Microsoft. Ganha em publicidade. Ganha fazendo circular (“gratuitamente”) conteúdo ao qual vem agregado a publicidade. Ganha monitorando virtualmente nosso gosto, nossas preferências, nossas atividades comuns e elegendo, com base nas informações que acumula, os produtos que devem ser de nosso interesse; cobra do anunciante, atinge um público cuidadosamente escolhido etc., etc., etc.

Mas na hora de distribuir conteúdo – vamos falar de música, especificamente -, o Google (e qualquer outro provedor) precisa pagar direito autoral, de acordo com legislações vigentes no mundo inteiro. Isso representa custo alto, dado o volume de informação em movimento. E aí entra o “facilitador” Creative Commons, um formulário pronto, que basta preencher e – eureca! – o autor abre mão de seu direito em troca da garantia (na verdade, nenhuma) de estímulo para divulgação da obra, uma vez que não há custo para quem a vai divulgar – e o verbo “divulgar” é usado eufemisticamente no lugar do que de fato é posto em prática: negócio. O conteúdo é negociado, não é “divulgado”. Ele é trocado pelas informações sobre seus gostos e preferências para orientar a publicidade que você recebe quando abre determinada página.

Você dirá: mas é assim que funciona o mundo. Verdade. Só que, no mundo dos negócios, todos os envolvidos ganham alguma coisa – uns poucos ganham muito, uma parte ganha alguma coisa, a maioria ganha bem pouco, mas todos ganham. No caso da “flexibilização” do direito autoral todos ganham – menos o autor. Só que, sem o autor, não há obra, e sem obra essa estrutura toda não tem razão de ser. Então porque apenas o autor deve abrir mão de seu lucro, se é ele que faz rodar a engrenagem?

Claro que ninguém é obrigado a usar a licença do Creative Commmons. Mas o autor vai pensar, inevitavelmente, que se ele não abrir mão de seus direitos e os outros abrirem mão, a obra dele vai ser preterida, porque tem custo, enquanto a dos outros não tem. Então, porque precisa mostrar a obra, ele acaba abrindo mão de seu direito de autor. É só isso. Foi só por isso que a licença foi retirada da página do MinC. Porque ela induzia o autor a abrir mão de seu lucro – aumentando o lucro de quem veicula sua obra. Uma espécie de Ardil 22, mais cruel – muito mais cruel – do que o Ardil 22 original, vocês lembram? O livro “Ardil 22”, do norte-americano Joseph Heller (filmado por Mike Nichols) é passado numa guerra – da Coreia, acho. Os pilotos têm um número determinado de bombardeios para realizar, e esse número sempre aumenta. Então, o sujeito resolve pedir para ser dispensado, porque não aguenta mais a barbaridade que está cometendo. Vai ao médico, que lhe pergunta: “Você está maluco”? O cara responde que não. “Então não posso lhe dar licença. Você não está ferido. Só poderia dispensá-lo se você estivesse ferido ou louco. Mas se você estivesse louco não pediria para parar de voar. Se você pede para parar de bombardear, é porque você está são. E se você está são, não posso dispensá-lo”.

Agora querem expulsar Ana de Hollanda do MinC. Há um golpe em andamento. Ela mexeu em vespeiro e estão fazendo o possível para defenestrá-la.

Ela feriu a lógica do Ardil 22. Como não pode ser punida por tirar uma peça publicitária da página do MinC, o cerco vem de outros lados. Escândalo no Ecad? Culpa da ministra. Os órfãos da estrutura montada por Gilberto Gil & Juca Ferreira no governo Lula, que davam por certo assumir o MinC, querem que Ana de Hollanda façam intervenção no Ecad – mas intervenção numa entidade de direito privado, que história é essa? O Ecad, que funciona mal, mesmo, sem dúvida, pertence aos autores. Foi criado, nos anos 60, como órgão fiscalizador da arrecadação de direitos autorais. Antes do Ecad, cada sociedade de direitos autorais recolhia o dinheiro de seus associados e o distribuía de volta como bem entendesse, sem ter de prestar contas a ninguém. O papel do Ecad é fiscalizar, de forma centralizada, a arrecadação e distribuição, punindo quem cometa impropriedades. O próprio Ecad, no entanto, comete (muitos) erros. Pois que se conserte o Ecad. Que os autores (e intérpretes e arranjadores e todos os envolvidos) se unam para fiscalizar o Ecad. Não que o governo intervenha para acabar com o Ecad. Ou, pior do que isso, como anda sendo defendido: que o governo se torne gestor do dinheiro do direito autoral.

Porque essa reivindicação, vale lembrar, é antiga. É do interesse dos donos de emissoras de rádio e televisão, concessões públicas que em grande parte acaba nas mãos de caciques políticos – que são contra a cobrança do direito autoral, obviamente. Os políticos vivem pedindo intervenção no Ecad. Agora, por inocência ou desconhecimento, ou malícia, ou interesses ocultos, um monte de gente – intelectuais em bons postos públicos, criadores que frequentam gabinetes, ambiciosos que se sentiram lesados com a mudança da política do MinC – estão fazendo coro com os políticos que não querem pagar o direito autoral. E a ministra é contra? Derrube-se a ministra!

Pois agora querem expulsar Ana de Hollanda do MinC. Há um golpe em andamento. Ela mexeu em vespeiro e estão fazendo o possível para defenestrá-la.

Devo dizer que não tenho procuração para falar em nome de Ana de Hollanda. Nem estou dizendo que Gilberto Gil & Juca Ferreira tenham agido de má fé. Apenas acho que eles estavam equivocados e que Ana de Hollanda está certa. Ou no caminho certo. E tenho certeza de uma coisa: se o golpe que está sendo armado der certo, estaremos dando um passo para trás, um imenso, infinito passo atrás, em termos de democracia, de gerenciamento independente, de visão criativa apartada (embora não ignorante dele, atenção) do mundo do mundo do negócio. Estou com medo.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Paisagens de um mundo interior: a magia de "Só", novo trabalho de Ulisses Rocha

Entre olhar e ver vai o mundo. Pode-se apenas perceber, vislumbrar, relancear. Mas quem de fato vê, este rearruma os elementos. Integra-se a eles não somente para apreender sua integridade, mas para recompô-la e, com isso, recompor-se, transfigurar-se. Ver é solitário. Requer tempo, disponibilidade, inteligência. E não requer que o visto esteja ali, palpável, físico. Nem mesmo existente. Ver é para dentro.

Algumas pessoas, poucas, conseguem traduzir em arte tal exercício introspectivo – em poesia, qual seja a forma que tome (palavras, imagens, melodias). Penso nisso enquanto ouço o novo trabalho do violonista Ulisses Rocha, intitulado “Só”. Penso nisso porque a riqueza da música me induz a uma viagem evocativa de sentimentos, ambientes, rostos, fatos, memórias que nem sei se tenho ou conheço. Atribuo, inicialmente, o nome do disco ao fato corriqueiro de ser este um CD de violão solo. Mas sou tomado pela plangência das melodias, pela rigorosa composição imagética que surge a cada tema ou subtema expostos, pelas fusões, alternâncias, justaposições de texturas: não, este não é um CD de violão solo, não apenas. É a grande arte, a rara, superlativa grande arte, poesia.

Só depois de várias audições abro o encarte do disco e leio o texto do autor: “Foi acontecendo de madrugada, depois que todo mundo dormia e o silêncio convidava a uma viagem solitária pelas paisagens musicais”, escreveu Ulisses Rocha, “como sempre sonhei, em casa, sem pressa nem ansiedade, fazendo, refazendo ou desfazendo, compondo, tocando e gravando com toda a liberdade e conforto, sem a percepção do tempo”.

Vejam que Ulisses não falou de premência temporal, mas em percepção temporal. Na primeira hipótese, o sentido de urgência seria regido pela cronologia convencional – o compromisso e as consequências de não cumpri-lo. Na segunda, a urgência só se justifica pela necessidade interior, criativa, de capturar (para traduzir de forma pessoal) uma nuance, uma explosão de cores, a gravidade de certa penumbra, o caráter nostálgico de um som, do movimento de um galho de árvore, a forma de uma pedra, a maneira como a água do mar se quebra em onda contra a pedra.
O formidável é que não foi preciso ler o texto, antes, para entender o significado de “Só”.

Como somente um artista de gênio consegue, Ulisses Rocha projeta, com sua música, metempsicose, para que os admiremos, para que também os adoremos, os seres, objetos, paisagens, as sensações, as expectativas que o moveram no ato da criação. Proeza ainda maior quando filtrada pelo formato gélido, retilíneo, do registro digital: à distância, em outro horizonte, todo o engenho humano no êxtase da perfeita articulação da linguagem artística.

O sabor que me fica, como o que traz aos sentidos, em ressonância, o gole de um bom vinho, é por vezes villalobiano, egbertiano ou jobiniano – mas apenas porque a música de Ulisses transpira a brasilidade que esses mestres ajudaram a desenhar. A música de Ulisses Rocha é dele, nascida de sua percepção, tradução de suas crenças e descrenças, projeção de suas utopias ou consubstanciação de seus sonhos. Mas é dele. Aquelas abstrações (tão concretamente realizadas) são dele e só dele.

Ulisses nasceu, como Villa e Jobim, no Rio de Janeiro, mas passou a infância no interior do estado de São Paulo – para ser preciso, em Pirassununga. Aos dez anos – em 1970 –, já em São Paulo, começou a estudar violão (com Antonio Manzione). O mestre mudou-se para Santos e o jovem aluno seguiu sozinho, experimentou a guitarra e o rock e, em 1977, ingressou no Centro Livre de Aprendizagem Musical (Clam), do Zimbo Trio.

Ficou amigo de André Geraissatti, que dava aulas no Clam e o convidou a integrar o inovador e importantíssimo trio D’Alma (o terceiro violão era Rui Salene; também participaram do D’Alma Mozart Mello e Cândido Penteado). A formação era tão inusitada e de tão brilhantes resultados que inspirou John McLaughlin a criar grupo semelhante, com Paco de Lucia e Al Di Meola.

Desfeito o D’Alma, Ulisses assumiu carreira solo que já rendeu mais de uma dezena de discos preciosos. Nesse meio tempo, Cesar Camargo Mariano o convocou para seu projeto “Prisma”; Ulisses tocou com Hermeto, Egberto, Marco Pereira, Paulo Bellinatti, cantores e cantoras, viajou e teve discos lançado pelo mundo, participou de grandes festivais, solou à frente de sinfônicas, escreveu dois livros – um deles, “Estudos para Violão”, com obras de sua autoria, é item obrigatório no currículo de quem deseja conhecer a fundo o instrumento. A alma do instrumento.

Tal com ela se expõe integral em “Só”. Os dez temas, todos assinados por Ulisses, poderiam, simplificadamente, ser chamados de descritivos. Mesmo os títulos – “Duna”, “Lua”, “Ítaca”, “Jabuticaba” – indicam a possibilidade que, de fato, seria limitadora. O título é necessário para identificar o tema, mas o tema o transcende, amplia, reforma. Uma lua não é uma lua não é uma lua não é uma lua – é a quintessência da lua, o que ela desperta, insinua, plasmada naquele específico encaminhamento harmônico, naquela pausa e naquele pulso únicos com os quais a sensibilidade do músico vai reformando o que sente ou observa.

Mas “Só” não é um trabalho hermético, para iniciados. Pelo contrário, faz-se ouvir fluidamente, com prazer, antes de mais nada, e ao prazer se acrescenta o regozijo que nos traz a plenitude da beleza. Uma daquelas obras que revela a maravilha – e vai de novo a expressão - do engenho humano.

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Tenho apreço especial por melodias de saibro melancólico, o traço quase inexprimível de certa tristeza que acredito inerente à alma do ser sensível. Lembro de dividir com Guinga o posto no júri um festival quando surgiu discussão sobre a música de certo candidato – por sinal outro violonista. Alguém no corpo de jurados argumentou que a obra do concorrente era muito triste. Guinga fico furioso: “Eu gosto de música triste! Por que é que eu não posso gostar de música triste? Qual é o defeito da música triste?”

Naturalmente que ele não falava (como eu não falo, agora) do sentimento que nos traz a grande tragédia, a violência, a injustiça ou a miséria, mas de nossas intrínsecas fragilidades, da convivência com a finitude, da intangibilidade da beleza absoluta, a consciência das imperfeições que nos moldam. Sobretudo, de indignação: se o engenho humano é capaz de originar “Só”, de Ulisses Rocha, por que cargas d’água construímos um mundo tão estúpido como é o nosso?

O disco de Ulisses, tal como o percebo, deixa pairando essa pergunta. Por outro lado, fornece, com sua perfeição, a hipótese de alguma alternativa.

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“Só” é um disco independente. Não sei em que lojas estaria disponível. Aconselho que visitem o site do artista: www.ulissesrocha.com.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Luiz Americano, inventor do clarinete brasileiro: homenagem em três CDs com gravações originais

Se você ouve com atenção e dedicação o sopro do clarinetista Paulo Sérgio Santos percebe, ali, a peculiar convivência de alguns méritos que parecem, em princípio, excludentes. O toque é tecnicamente primoroso, mas o rigor abre sempre espaço para um quê de brejeirice, de humor menos formal, mais para conversa de botequim do que para palco do Municipal – sem que uma característica se sobreponha ou anule a outra. Há a extrema sobriedade na abordagem melódica, mas resta espaço para o comentário malicioso, o olhar de viés para alguém (ou alguma coisa) muito interessante que, se não nos é visível, brilha na imaginação do intérprete. Cada nota é pronunciada com precisão absoluta, mas um glissando, uma síncope, uma respiração desmontam e remontam o palácio melódico. Reside na convivência das dicotomias a marca registrada do gênio, que alcança a maestria do suntuoso sem o manto incômodo da liturgia do cargo.
Falo de Paulo Sérgio Santos porque o considero um dos maiores instrumentistas do mundo em todos os tempos. E porque ouço em sua execução a herança, bendita herança, de outro monstro sagrado, como ele saxofonista e preferencialmente clarinetista Luiz Americano, de memória muito viva para os dedicados ao choro (e suas variações), mas, como acontece tanto, praticamente desconhecido do público – mesmo do público amante do choro, que tem conhecimento de algumas de suas obras muito gravadas e pouco sabe do monumento de seu legado. Corrigindo a falha, a brava gravadora curitibana Revivendo acaba de lançar três CDs com gravações de Luiz Americano registradas nas décadas de 1920 e 1930, por diferentes gravadoras e com diversas formações.
Muito do que é especial em Paulo Sérgio (e de outros grandes sopristas de que sempre fomos pródigos e de que, agora, temos novos e excepcionais expressões) veio de Luiz Americano (embora não só dele). Não de forma estática (extática seria uma boa palavra, mas é outra consideração), sim como referência, molde, modelo, alicerce, moldura, indicação. Não fosse Luiz Americano o pioneiro na utilização do clarinete no choro.
É tal a maravilha que se apresenta nas 60 faixas coligidas nos três volumes da coleção Luiz Americano – 50 Anos de Saudade. Justificando o título: o cinquentenário de morte do músico foi no ano passado. A intenção inicial da gravadora era lançar os três CDs na data justa. Com a morte do criador da Revivendo, Leon Barg, em 2009, o projeto atrasou um pouco. A empresa passou para as mãos de suas duas filhas, Laís e Lilian, que, aos poucos, retomam o trabalho. No que diz respeito a Luiz Americano, Leon havia deixado tudo pronto (em tempo: deixou pronto, também, para lançamento, homenagem ao centenário de Assis Valente, coleção de cinco volumes com gravações originais de Ataulfo Alves, coletânea dos primeiros registros fonográficos de Gilberto Alves e mais algumas preciosidades).
Deixar “tudo pronto” é coisa de trabalheira monstruosa. Leon Barg, um filho de judeus romenos nascido no Rio de Janeiro, em 1930, e criado no Recife (radicando-se, em 1954, em Curitiba), foi, antes de mais nada, grande amante da música brasileira e colecionador meticuloso, obsessivo mesmo. Ao longo da vida reuniu o que havia de disponível em discos de 78 rotações. O acervo chegou a dimensão e importância – 120 mil títulos - tais que Leon achou por bem dividi-lo com outros amantes da música, estudiosos, historiadores e quem mais se preocupe com a história da cultura. Assim nasceu, em 1987, a gravadora Revivendo.
O objetivo: relançar os registros originais tanto de artistas conhecidos como de outros, de cuja memória não se tem tanto registro. Leon começou a separar o acervo por artistas (Carmem Miranda, Silvio Caldas, Chico Alves), assuntos (marchinhas de carnaval, festas populares), movimentos (o samba canção, os fox-trots), momentos peculiares da vida de um intérprete (as faixas instrumentais de Luiz Gonzaga) e assim por diante. Elaborada a ideia, batia à porta das gravadoras. Nunca assisti a nenhum de seus encontros com executivos de multinacionais do disco, mas sei que a conversa era assim: “Olha aqui, amigo, você tem direitos sobre um material precioso do qual não vai fazer uso. Esse material vai se perder, vai ser esquecido e vai empobrecer a memória nacional. Eu tenho uma pequena gravadora que pode levar esse tesouro a público. Mas não tenho dinheiro para pagar pelos direitos o preço de mercado. Qual é o arranjo que a gente pode fazer?” – conversa de mascate. Não me consta que Leon tenha deixado algum gabinete com um “não” como resposta.
No começo eram elepês, depois vieram os CDs e algumas publicações em livro, numa conta que chega a 400 títulos. Os (re)lançamentos são cuidados, passando por processo de remixagem de acordo sempre com a tecnologia mais recente – Leon chegou a mandar matrizes para os estúdios da Abbey Road, referência no tipo de trabalho; posteriormente, ele mesmo passou a manejar a tecnologia. E assim, contada essa historinha, podemos voltar ao tributo a Luiz Americano.
Clarinetista, saxofonista, compositor, arranjador, homem de ideias, Luiz Americano Rego nasceu em Aracaju, Sergipe (27 de fevereiro de 1900) e começou a tocar por influência do pai, mestre de banda local. Serviu o exército como músico de banda e não deu baixa. Foi transferido para Maceió, primeiro, depois para o Rio de Janeiro, onde, no início dos anos 1920, fez as primeiras gravações profissionais na Odeon (os famosos registros da Casa Edson, a grande editora musical de então). Era do time de fundadores da primeira rádio comercial brasileira – a Rádio Sociedade – morou por algum tempo na Argentina e, em 1932, de volta ao Rio, integrou o grupo Velha Guarda, com Pixinguinha, Donga, João da Baiana e outros fundadores da canção popular como a entendemos hoje. Sabe aqueles solos brilhantes que pontuam a instrumentação das canções gravadas por Carmem Miranda, Chico Alves, Orlando Silva? Era Luiz Americano, ao sax alto ou ao clarinete, sempre combinando dinâmica e preciosismo à delicadeza e ao bom humor. Sabe quando Villa-Lobos levou Pixinguinha ao navio Uruguai para mostrar a música brasileira a Leopold Stokowski? Luiz Americano estava junto (e no disco resultante há uma faixa de autoria dele, Tocando pra Você).
Sabe quando o clarinete dá uma gargalhada? Foi Luiz Americano quem riu primeiro. E estou falando do instrumentista. Não conheço a conta exata, mas sei que Luiz Americano compôs mais de 200 valsas, choros, serestas, maxixes, polcas – na verdade, choros, catalogados sob rótulos diversos para facilitar a comercialização. No entanto, mesmo chorões de inspirada cepa conhecem pouco da obra. Algumas delas são quase de domínio público – É o que Há, Lágrimas de Virgem, Numa Seresta. De quase todo o mais, poucos sabem.
Bom, ficou mais fácil. Ficou mais simples entender o tal conceito de “clarinete brasileiro” que definiu a carreira de K-Ximbinho e Paulo Moura, define a de Paulo Sérgio Santos ou Nailor Proveta e vai definindo outras que se formam. São todos filhos musicais de Luiz Americano. O que suscita uma elocubração, por sinal: é tão fundamental para o entendimento do Brasil ouvir a música de Luiz Americano quanto conhecer a obra de Gilberto Freyre ou Sérgio Buarque de Hollanda. Será que alguém duvida disso? E por que não se fala nisso?
Antes de terminar, uma historinha. Muito embora fosse um compositor formidável, Luiz Americano gravou muita música de outros autores – Radamés Gnattali, Vicente Paiva, por exemplo – e tornou famoso (a ponto de muitos pensarem que é dele) o choro Saxofone, Por que Choras, na verdade composto pelo paraibano Severino Rangel de Carvalho, mais conhecido como o Ratinho, da dupla Jararaca e Ratinho. Bom, há uns vinte anos, quando teve início a parceria Guinga-Aldir Blanc, entre as canções estava o Choro Pro Zé, dedicado ao saxofonista Zé Nogueira. Para a linda melodia guinguiana, Aldir escreveu versos que desta forma começam: “Oh, por que choras, sax, tanto assim?” Pois é, Guinga e Aldir sabem das coisas.
Naturalmente, você não vai encontra a coleção 50 Anos de Saudade em todas as lojas de disco, até porque são poucas as lojas efetivamente de disco. Mas há em algumas. E a Revivendo vendo pelo site. Vale uma consulta. Beijos e carinhos musicais. Prometo que volto logo.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

O mundo é melhor com "Batuque de Tudo", de Celso Viáfora

Plantada no coração bandeirante fica a fazenda onde mora e obra Rafael Alterio, um sujeito enorme e delicadíssimo, um passional altifalante cuja exuberância contrasta com e se completa na doçura da companheira e parceira Rita, pessoa dessas de beleza e candura que fará o mundo espantado para sempre. Na paisagem aberta e de horizontes amplos como o peito do capo o tempo parece passar um pouco mais suavemente. O dia chega com doçura e o sol da tarde atravessa as janelas para conversar com você. Foi que um dia o casal decidiu construir um estúdio que fosse também pousada, de quartos amplos e cuidadosamente decorados, cada viga, cada paninho sob cada lâmpada de cabeceira, cada tapete escolhidos para trazer sensações de paz e aconchego. O mesmo cuidado se deu na montagem do estúdio, onde Celso Viáfora gravou o duplo CD/DVD “Batuque de Tudo”, que acaba de ficar pronto e faz só confirmar o gênio do compositor, cantor, violonista, arranjador, aglutinador, desbravador ousado cuja carreira cresce com o requinte e beleza que fazem dele um dos grandes nomes de nossa canção em todos os tempos.
E por que motivo falar demoradamente do lugar onde Celso resolveu gravar seu novo disco? Pois bem, fora a parceria com o dono da casa, o compadrio e a velha amizade, fora a atmosfera que ali se respira como em poucos outros cantos, porque Celso teve pretendeu reunir as vertentes nacionais, os sotaques, as falas brasileiras que impregnam sua composição. Aquele estúdio-pousado era ideal para abrigar os músicos vindos da Amazônia – o Nilson Chaves, o Trio Manari -, os instrumentistas da primeira linha do samba carioca – Carlinhos Sete Cordas à frente -, a dinâmica toda própria de seus fidelíssimos instrumentistas de São Paulo – o contrabaixo de Sizão Machado, as cordas dedilhadas ou rasqueadas de Webster Santos, a flauta dulcíssima de Lea Freire -, o urbano do Rio de Janeiro representado por Ivan Lins, o sertão semi-árido baiano na passionalidade pungente de Vicente Barreto, o samba de todos os sotaques dos meninos do Quinteto em Branco e Preto, da periferia da capital paulista e ainda os novos parceiros e companheiro, nova geração de talentos que o mestre adotou – os Pedrinhos Viáfora e Alterio, filhos de quem?, Dani Black, Tatiana Parra, Caê Rolfsen e assim por diante estou falando de alguns). Para que os batuques conversassem. Pois o batuque de tudo só existe se for o batuque de todos.
Celso Viáfora começa a montar cada um de seus discos a partir de conceito muito bem estabelecido e que vai sendo meticulosamente trabalhado ao longo de muito tempo – dois anos, três anos – e quando começa a gravar tem muito claro o que pretende em termos temáticos, de sonoridade, de dinâmicas. Foi assim com o portentoso “Palavra”, CD anterior a este “Batuque de Tudo”, em que a intenção era estabelecer diálogo de sua composição e percepção sonora com outras pontas da ambiência sonora do novo século – sem nenhuma restrição: dos recursos eletrônicos ao coro de pastoras do samba. E obter como resultado nova tradução de seu sotaque, ou a tradução em outra roupagem de sua personalidade, de sua sensibilidade, sem permitir que uma semifusa da digital criativa histórica fosse traída ou que a janela de projeções abrisse para paisagem incongruente. O que fez de “Palavra”, na minha opinião, o disco mais importante da primeira década dos anos dois mil.
Daquela conjunção em “Palavra” decorre, ou avança, o conceito do “Batuque de Tudo”. Em ambos se prega, se não o conceito da bondade natural do ser humano, ao menos sua capacidade de remissão. Nos dois conjuntos de peças está dito os homens não são separáveis por religião, etnia, origem, composto cultural, mas que, em oposição, as características específicas sugerem o entrosamento, a união, o encontro, o aprendizado e o enriquecimento da sabedoria, da generosidade – a harmonia que pressupõe um mundo melhor, de gente maior e mais delicada, de seres carinhosos – sem perder a capacidade crítica -, feitos para o acolhimento e, se for o caso, o perdão – sem deixar de lado o exame das cláusulas pétreas do caráter, da honestidade, distinção, respeito, boa vontade, paz na terra aos homens de.
Não é à toa que as divindades, as criaturas que o homem cria para nelas espelhar-se, os seres divinos a que cada cultura dá diferentes nomes e para quem cria rituais de infinita diversidade – estejam presentes na obra. Com atenção para o fato de que o exame das mitologias é antropológico, não religioso. E precisa estar ali porque Celso canta o mundo e seus ritos – a família, os amigos, as relações de sociedade, os entendimentos e as distâncias. O que é, com rigor, coerente com a ideia de juntar todos os batuques brasileiros – não, todos não, aqueles que o tocam, que incidem sobre seu verbo e seu pulso, aqueles com que tem contato mais íntimo – num mesmo lugar, durante uma semana, para o registro das canções em áudio e vídeo, ao vivo, sem maiores retoques do que os exigidos por alguma circunstância imprevista.
No fim das contas, as 13 canções do CD e as 19 do DVD reiteram o ideário de um artista que se faz guiar antes de mais nada pela retidão de caráter. E aí vem a música. E aí vem a poesia. Seria talvez exaustivo falar das músicas, cada uma, o marabaixo e a toada, o batuque nortista e o eco da chula baiana, o ronco do surdo do samba remetendo aos terreiros desse País sem fronteiras – do Curiaú à Tia Ciata e daí às transformações em que outros sotaques e novas tecnologias possam resultar. É tedioso ler sobre o que foi feito para ser ouvido. O papel do escriba é tentar fazer com mais pessoas saibam das maravilhas contidas no “Batuque de Tudo” – e no resto da obra de Celso Viáfora – e mais pessoas procurem por seus trabalhos gravados, suas apresentações ao vivo. Porque de cada audição, de cada momento passado na platéia, o ouvinte, o espectador, sai pessoa mais rica e generosa, por contágio, doce contágio.
Eu disse lá em cima que “Palavra” é disco mais importante dos primeiros anos do nosso século. No começo de uma nova década, “Batuque de Tudo” tem a beleza e a seriedade – e a alegria, a esperança, o humor, a indignação sem a qual nos imobilizamos, o critério (ou seja, o caráter assertivo, o cuidado com as afirmações, o tom humanista e a crítica do mau uso das qualidades positivos, da usurpação da bondade, da crença, para usos espúrios) para assumir papel idêntico. Como um passo à frente, pois é para a frente que se anda.
Em tempo: o DVD “Batuque de Tudo” não tem pirotecnias, não é compilação de clipes ou ilustração do que a canção quer dizer. Trata-se do registro das gravações, com algumas falas, uns poucos depoimentos. É, sobretudo, o registro visual de um encontro feliz de virtuoses em sintonia absoluta, em que cada nota, cada sílaba, cada acento rítmico foram escolhidos, meticulosamente escolhidos (mesmo quando alguma coisa nasceu no calor do momento) para fazer do mundo um lugar melhor. Ainda que por alguns momentos. Mas essa é uma outra questão.

sábado, 26 de junho de 2010

O que move uma cultura no caminho de sua voz verdadeira

Tenho ouvido alguma coisa em torno de trinta discos por semana – títulos que me são entregues em mãos por amigos, conhecidos, gente que de alguma forma – muito obrigado, desde antes – dá algum valor à opinião que eu possa ter sobre seu trabalho. É uma imensa responsabilidade opinar sobre trabalho alheio e a confiança que me estendem orgulha e comove. No tempo em que trabalhei em jornais grandes (Globo, Estadão), procurei sempre valorizar a produção independente, abrir mais espaço para os sem-mídia do que para os medalhões. Raciocinando assim: se eu comento o disco novo do Caetano Veloso, nada muda na vida (ou na obra) do Caetano Veloso. Se eu comento o disco (ou o show, ou o encontro numa roda), por exemplo, da Ilana Volcov (sobre cujo “Bangüê”, recém-lançado, extraordinário, vou falar aqui, em postagem próxima), ajudo a tornar Ilana Volcov, um talento indiscutível, um pouco mais conhecida do que ela é.
Claro que a eficácia desse tipo de atitude quando se escreve para um veículo da grande imprensa é muito grande, com repercussão desmedidamente maior do que terá a publicação num blog, numa revista virtual, uma página na nuvem da informática entre centenas de páginas que cuidam de interesse assemelhado.
Mas, por tudo o que tenho ouvido, por tudo o que tem chegado ao meu conhecimento, e considerado o vício profissional de contador de novidades e a ainda presente condição de espectador privilegiado, já que as novidades chegam às minhas mãos, não dá pra ficar calado – não dá para esconder o elogio ou, eventualmente, lamentar uma chance mal aproveitada, gritar contra os absurdos, estabelecer a indignação com as políticas culturais, com o massacre da indústria cultural. E sempre pensando que, de alguma forma, a publicação (a postagem, tá bem) vá, de alguma forma, contribuir para que um número maior (mesmo que um pouquinho só maior) de pessoas tome conhecimento do que acontece na aparentemente inesgotável fonte de coisas boas que é a produção de nosso cancioneiro.
Nos últimos anos houve uma modificação, desde muito tempo prevista, apontada como inevitável, na relação da indústria da música com a música. Os grandes nomes (quase todos) abandonaram a indústria e migraram para selos alternativos, independentes, não comprometidos com o eixo tv&rádio que determina quem, como, quando e onde faz e como faz e o que toca e como toca e quanto toca e estipula o quanto o “produto”, termo da indústria, precisa vender para compensar o investimento em publicidade, em compra de horários, em corrupção de programadores e produtores e os outros integrantes da cadeia (será que a palavra surgiu aqui por acaso?). Bom, os grandes nomes são os mesmos que já eram grandes nomes – aqueles a quem rendemos respeito e graça pelas qualidades intelectuais, pela honestidade da obra, pela lisura no relacionamento da arte. Novos grandes nomes com tais características não chegaram aos ouvidos do grande público e é improvável que cheguem – até por coerência de todas as partes envolvidas. Se a indústria abre mão dos consagrados por considerá-los comercialmente difíceis, o que a levaria a criar outras peças difíceis, dar início ao complexo processo de popularização? Do outro lado da cerca, os criadores insurgentes (ah, como é boa a palavra da língua portuguesa, com sua multiplicidade de sentidos!) também não querem saber daquele círculo viciado que vai tentar moldar seu estilo, conformar sua personalidade, aplainar seus picos de estranhamento, afinar (sentido amplo) sua sensibilidade com a de um espectral “gosto médio” cuja percepção e receptividade é definida por gráficos de consumo.
Dito de outra forma, a arte está de um lado, a indústria de outro e as duas peças não jogam no mesmo tabuleiro.
Há dois anos participei, em Curitiba, de um encontro que reunia associações ligadas à produção independente e à gestão do direito autoral (Aldir Blanc diz que o Brasil não tem direito autoral, tem errado autoral). Representando a produção alternativa estava a Associação Brasileira de Música Independente (ABMI), que abrigava entre seus participantes, na época, 63 gravadoras. A análise da produção fonográfica do ano anterior mostrou o seguinte: as quatro multinacionais do disco que funcionam no Brasil lançaram, no período, 130 títulos. Desses, 75 eram licenciamento de obras produzidas no exterior, e 55, obras nacionais. No mesmo espaço de tempo, as gravadoras independentes levaram ao público 784 discos novos, de produção nacional. Pois bem, aqueles 55 títulos das multinacionais ocuparam 87,37% do tempo de veiculação musical das rádios abertas de todo o País, contra 9,82% do tempo destinados à criação alternativa. (A conta não dá 100% porque não entram no cálculo as compilações feitas, por exemplo, pela Som Livre.)
Na verdade, o absurdo é maior do que esses números apontam, pois nem todas as gravadoras e nem todos os criadores independentes são afiliados da ABMI. Numa estimativa conservadora, pode-se multiplicar por dez aqueles 784 títulos usados para fazer a conta.
E ainda assim, amigos, vale a pena brigar? Claro que vale. Só não valerá para quem considere todo ouvinte burro, todo leitor tapado, todo o público manipulável, toda a cultura inútil. Não valerá para quem tenha perdido o amor-próprio, para quem desdenhe de suas próprias aflições e esperanças, para quem desista do verbo e se encaracole no silêncio de antes da palavra e da música. E eu não acredito que haja gente assim. Pelo menos não em número significativo.
E foi por necessidade vital e responsabilidade intelectual de contribuir, de alguma forma, para vencer a barreira do silêncio, que resolvi começar esse blog. Ele estreou na semana passada, com um comentário sobre o show da cantora Tatiana Parra – um show tão bom que era impossível não escrever sobre ele. A resposta foi bacana e mereci algumas delicadas correções. Uma delas tratando de caso grave: não incluí no texto o nome dos músicos participantes do espetáculo, nem os dos diretores e técnicos, todos tão importantes para a qualidade formidável do resultado. Apresento minhas escusas.
Assim, na semana passada dei o pontapé inicial, movido pela coceira na ponta dos dedos das mãos, pela inapelável necessidade de dividir com mais pessoas a emoção que me tomou depois do show que tive a graça de ver. Hoje tento expor as razões daquele pontapé e justificar, com o peso de alguns números e o peso maior da emoção, a disposição (e a pretensão) de montar guarda, ao lado de tanta gente que admiro, e de tanta gente que virei a admirar, nessa guerrilha de remissão. Pois comecei. Quero falar de shows, de discos, de encontros, de rodas, de conversas, de surpresas, de sentimentos, de política, de atitude, de tomada de posição, de resistência, de impaciência e indignação – do que move um povo, uma cultura, no caminho de sua voz verdadeira. Eu sei que é pouco. Eu sei que é muito.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Tatiana Parra cria divisor de águas em show no Sesc Pompéia

Tatiana Parra é, por gasta que seja a expressão, uma rara unanimidade no meio musical paulistano de agora. Quem faz música ou admira ou está envolvido com música sabe de sua afinação e bom gosto, dedicação e seriedade, da graça de seu misto de ingenuidade e malícia. Créditos que são, feitas as contas, indispensáveis a quem queira subir ao palco como porta-voz (e quem precisa de cantora que não seja porta-voz, afinal?).
Tanto assim que o primeiro disco de Tatiana vinha sendo esperado como grande acontecimento. Eventualmente, expectativa do tipo da que cercou o trabalho dela é frustrada. Quase sempre espera-se mais do que de fato vem. O caso de Tatiana é radicalmente oposto. Mesmo quem a conhece, quem acompanha seu trabalho – do tempo de backing vocal de cantores populares, do tempo de integrante da bela formação criada há alguns anos pelo compositor e violonista Chico Pinheiro (ao lado de Maria Rita, Luciana Alves...), do atual status de musa da nova geração de compositores da cidade – mesmo que bem a conhece levou um sopapo. Tatiana é muito mais do que a melhor expectativa poderia fazer acreditar.
E quem foi ao teatro do Sesc Pompéia ontem (quinta-feira, dia 18 de junho), viveu uma experiência-limite. Não assistiu ao show de lançamento do disco de mais uma boa cantora. Assistiu a um dos melhores espetáculos que o nobre teatro jamais abrigou. Viu brotar da garganta de Tatiana Parra a força e a maturidade de uma intérprete poderosa como há décadas nossos palcos não pariam.
Que ninguém se sinta diminuído com tais assertivas. O cenário da canção brasileira é muito bom (gosto de dizer que a cultura vai bem, quem vai mal é a indústria cultural – e a indústria cultural que se dane), mas faltava uma voz descolada de rótulos estilísticos, uma voz ampla, abrangente, que desse conta da fartura criativa de nossos autores (Tatiana é também ótima compositora, aliás), que desse o passo adiante – que não fosse a sucessora de Elis Regina (horrível, mas ainda se fala nisso) e sim o que vem depois de Elis Regina, aproveitando o que havia de melhor nela (e nas outras importantes como ela) para andar em frente, criar a fala nova, impor outros parâmetros, fazer nova diagnose de nossas dores e esperanças, das fraquezas e da pujança nossa, o coletivo Brasil, a questão da identidade.
O cena musical vai bem, sim, mas faltava alguém que estivesse tão distante do não-me-toques das cantoras frágeis, das marisas aos montes de muitos gestos e relevância dúbia, alguém tão distante delas, dizia, quanto da agressividade das moças de cara fechada e protesto inócuo, de ira autocomplacente, existencialista (como se cada dor ou alegria fossem maiores do que a dor e a alegria coletiva). Alguém que aliasse generosidade e autoridade para falar pelo coletivo.
É quando nos chega Tatiana Parra. Acompanhada por um formidável sexteto, ocupando um cenário amplo, de cores fortes e ecos de bijuteria (algo a ver com a fugacidade da questão humana, talvez, e se foi tal a intenção o alcance é pleno), vestida com o cuidadoso despojamento que instrui a magia do palco (e o palco é representação, vamos lembrar), Tatiana alinhavou o repertório primoroso em roteiro de enorme inteligência, coerente, contundente, pleno de significados, roteiro em que – sim, afinal! – o todo é maior do que as partes que o integram: porque Tatiana traçou a narrativa como quem junta palavras com habilidade de criar poema.
Palco é bicho traiçoeiro que pode embelezar ou enfear os feios e os belos. Tatiana é bela e fica deslumbrante, ocupando a integridade da cena, centro absoluto da atenção, ímã; se os músicos trabalham para ela, que resume o espetáculo, ela chama a atenção do público para eles, que podem ser indivíduos no coletivo (e essa é uma habilidade, ou preocupação, de poucos). Tatiana é graciosa, leve, mas ao mesmo tempo fortíssima, dona absoluta do espaço que ocupa, consciente de cada gesto, cada sílaba, cada nota – as palavras pronunciadas com perfeição, sempre inteligíveis, as letras ampliando seu significado, as notas exatas, a perfeita noção de tempo, as divisões intrigantes e reveladoras. Um universo de leituras se abre a cada canção, efeito mágico permitido aos grandes artistas.
Entre a suavidade e a contundência ela trabalha cada matiz, soltando o vozeirão (nem todo mundo sabia que Tatiana Parra tem vozeirão) sem pejo, porque está ali falando de suas verdades e verdades precisam ser ditas vigorosamente. O mote do show é Brasil, diversidade, a questão da brasilidade surgindo mesmo quando não era intenção clara do autor da canção (como é bom um bom roteiro!). E os autores são os meninos da nova safra – Dani Black, Pedro Viáfora, Pedro Alterio, Tó Bradileone e outros – e os medalhões – para concentrar numa canção só o conceito do espetáculo, ela desencavou o magnífico e esquecido Testamento, de Nelson Ângelo e Milton Nascimento: “Na reserva desse índio/ Clamo forte por um rio/ Soprem meus sentidos/ Pela vida de meu filho/ Cuidem bem de minha casa/ Tão cheia, meninos/ Tomem conta de aquilo tudo/ Em que acredito”.
É de se acreditar numa cultura capaz de dar à luz Tatiana Parra. É de se ter certeza de que Tatiana Parra estabeleceu um divisor de águas. Não será mais possível assistir a qualquer espetáculo de música sem pensar na excelência que ela nos oferta. Depois do show do Sesc Pompéia começou tudo de novo. E começou melhor.