quarta-feira, 6 de abril de 2011

Luiz Americano, inventor do clarinete brasileiro: homenagem em três CDs com gravações originais

Se você ouve com atenção e dedicação o sopro do clarinetista Paulo Sérgio Santos percebe, ali, a peculiar convivência de alguns méritos que parecem, em princípio, excludentes. O toque é tecnicamente primoroso, mas o rigor abre sempre espaço para um quê de brejeirice, de humor menos formal, mais para conversa de botequim do que para palco do Municipal – sem que uma característica se sobreponha ou anule a outra. Há a extrema sobriedade na abordagem melódica, mas resta espaço para o comentário malicioso, o olhar de viés para alguém (ou alguma coisa) muito interessante que, se não nos é visível, brilha na imaginação do intérprete. Cada nota é pronunciada com precisão absoluta, mas um glissando, uma síncope, uma respiração desmontam e remontam o palácio melódico. Reside na convivência das dicotomias a marca registrada do gênio, que alcança a maestria do suntuoso sem o manto incômodo da liturgia do cargo.
Falo de Paulo Sérgio Santos porque o considero um dos maiores instrumentistas do mundo em todos os tempos. E porque ouço em sua execução a herança, bendita herança, de outro monstro sagrado, como ele saxofonista e preferencialmente clarinetista Luiz Americano, de memória muito viva para os dedicados ao choro (e suas variações), mas, como acontece tanto, praticamente desconhecido do público – mesmo do público amante do choro, que tem conhecimento de algumas de suas obras muito gravadas e pouco sabe do monumento de seu legado. Corrigindo a falha, a brava gravadora curitibana Revivendo acaba de lançar três CDs com gravações de Luiz Americano registradas nas décadas de 1920 e 1930, por diferentes gravadoras e com diversas formações.
Muito do que é especial em Paulo Sérgio (e de outros grandes sopristas de que sempre fomos pródigos e de que, agora, temos novos e excepcionais expressões) veio de Luiz Americano (embora não só dele). Não de forma estática (extática seria uma boa palavra, mas é outra consideração), sim como referência, molde, modelo, alicerce, moldura, indicação. Não fosse Luiz Americano o pioneiro na utilização do clarinete no choro.
É tal a maravilha que se apresenta nas 60 faixas coligidas nos três volumes da coleção Luiz Americano – 50 Anos de Saudade. Justificando o título: o cinquentenário de morte do músico foi no ano passado. A intenção inicial da gravadora era lançar os três CDs na data justa. Com a morte do criador da Revivendo, Leon Barg, em 2009, o projeto atrasou um pouco. A empresa passou para as mãos de suas duas filhas, Laís e Lilian, que, aos poucos, retomam o trabalho. No que diz respeito a Luiz Americano, Leon havia deixado tudo pronto (em tempo: deixou pronto, também, para lançamento, homenagem ao centenário de Assis Valente, coleção de cinco volumes com gravações originais de Ataulfo Alves, coletânea dos primeiros registros fonográficos de Gilberto Alves e mais algumas preciosidades).
Deixar “tudo pronto” é coisa de trabalheira monstruosa. Leon Barg, um filho de judeus romenos nascido no Rio de Janeiro, em 1930, e criado no Recife (radicando-se, em 1954, em Curitiba), foi, antes de mais nada, grande amante da música brasileira e colecionador meticuloso, obsessivo mesmo. Ao longo da vida reuniu o que havia de disponível em discos de 78 rotações. O acervo chegou a dimensão e importância – 120 mil títulos - tais que Leon achou por bem dividi-lo com outros amantes da música, estudiosos, historiadores e quem mais se preocupe com a história da cultura. Assim nasceu, em 1987, a gravadora Revivendo.
O objetivo: relançar os registros originais tanto de artistas conhecidos como de outros, de cuja memória não se tem tanto registro. Leon começou a separar o acervo por artistas (Carmem Miranda, Silvio Caldas, Chico Alves), assuntos (marchinhas de carnaval, festas populares), movimentos (o samba canção, os fox-trots), momentos peculiares da vida de um intérprete (as faixas instrumentais de Luiz Gonzaga) e assim por diante. Elaborada a ideia, batia à porta das gravadoras. Nunca assisti a nenhum de seus encontros com executivos de multinacionais do disco, mas sei que a conversa era assim: “Olha aqui, amigo, você tem direitos sobre um material precioso do qual não vai fazer uso. Esse material vai se perder, vai ser esquecido e vai empobrecer a memória nacional. Eu tenho uma pequena gravadora que pode levar esse tesouro a público. Mas não tenho dinheiro para pagar pelos direitos o preço de mercado. Qual é o arranjo que a gente pode fazer?” – conversa de mascate. Não me consta que Leon tenha deixado algum gabinete com um “não” como resposta.
No começo eram elepês, depois vieram os CDs e algumas publicações em livro, numa conta que chega a 400 títulos. Os (re)lançamentos são cuidados, passando por processo de remixagem de acordo sempre com a tecnologia mais recente – Leon chegou a mandar matrizes para os estúdios da Abbey Road, referência no tipo de trabalho; posteriormente, ele mesmo passou a manejar a tecnologia. E assim, contada essa historinha, podemos voltar ao tributo a Luiz Americano.
Clarinetista, saxofonista, compositor, arranjador, homem de ideias, Luiz Americano Rego nasceu em Aracaju, Sergipe (27 de fevereiro de 1900) e começou a tocar por influência do pai, mestre de banda local. Serviu o exército como músico de banda e não deu baixa. Foi transferido para Maceió, primeiro, depois para o Rio de Janeiro, onde, no início dos anos 1920, fez as primeiras gravações profissionais na Odeon (os famosos registros da Casa Edson, a grande editora musical de então). Era do time de fundadores da primeira rádio comercial brasileira – a Rádio Sociedade – morou por algum tempo na Argentina e, em 1932, de volta ao Rio, integrou o grupo Velha Guarda, com Pixinguinha, Donga, João da Baiana e outros fundadores da canção popular como a entendemos hoje. Sabe aqueles solos brilhantes que pontuam a instrumentação das canções gravadas por Carmem Miranda, Chico Alves, Orlando Silva? Era Luiz Americano, ao sax alto ou ao clarinete, sempre combinando dinâmica e preciosismo à delicadeza e ao bom humor. Sabe quando Villa-Lobos levou Pixinguinha ao navio Uruguai para mostrar a música brasileira a Leopold Stokowski? Luiz Americano estava junto (e no disco resultante há uma faixa de autoria dele, Tocando pra Você).
Sabe quando o clarinete dá uma gargalhada? Foi Luiz Americano quem riu primeiro. E estou falando do instrumentista. Não conheço a conta exata, mas sei que Luiz Americano compôs mais de 200 valsas, choros, serestas, maxixes, polcas – na verdade, choros, catalogados sob rótulos diversos para facilitar a comercialização. No entanto, mesmo chorões de inspirada cepa conhecem pouco da obra. Algumas delas são quase de domínio público – É o que Há, Lágrimas de Virgem, Numa Seresta. De quase todo o mais, poucos sabem.
Bom, ficou mais fácil. Ficou mais simples entender o tal conceito de “clarinete brasileiro” que definiu a carreira de K-Ximbinho e Paulo Moura, define a de Paulo Sérgio Santos ou Nailor Proveta e vai definindo outras que se formam. São todos filhos musicais de Luiz Americano. O que suscita uma elocubração, por sinal: é tão fundamental para o entendimento do Brasil ouvir a música de Luiz Americano quanto conhecer a obra de Gilberto Freyre ou Sérgio Buarque de Hollanda. Será que alguém duvida disso? E por que não se fala nisso?
Antes de terminar, uma historinha. Muito embora fosse um compositor formidável, Luiz Americano gravou muita música de outros autores – Radamés Gnattali, Vicente Paiva, por exemplo – e tornou famoso (a ponto de muitos pensarem que é dele) o choro Saxofone, Por que Choras, na verdade composto pelo paraibano Severino Rangel de Carvalho, mais conhecido como o Ratinho, da dupla Jararaca e Ratinho. Bom, há uns vinte anos, quando teve início a parceria Guinga-Aldir Blanc, entre as canções estava o Choro Pro Zé, dedicado ao saxofonista Zé Nogueira. Para a linda melodia guinguiana, Aldir escreveu versos que desta forma começam: “Oh, por que choras, sax, tanto assim?” Pois é, Guinga e Aldir sabem das coisas.
Naturalmente, você não vai encontra a coleção 50 Anos de Saudade em todas as lojas de disco, até porque são poucas as lojas efetivamente de disco. Mas há em algumas. E a Revivendo vendo pelo site. Vale uma consulta. Beijos e carinhos musicais. Prometo que volto logo.

3 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Mauruba´s,
    Obrigado pela aula... Sensacional seu texto !!!
    Estamos orgulhosos do amigo-irmão.
    Parabéns e não deixe de escrever, nunca !!!
    Beijão no coração de todos nós.
    Isabella, Ana Luiza, Vânia e Marcelo Freire.
    Mel envia lambidas.

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  3. Mauro, tudo bom? Muito legal teu texto (e teu blogo todo), parabens!
    Abs!

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